Claro que hás-de ter razão, claro que não me diz respeito. Até parece que te esqueceste de como nos conhecemos afinal. Na manifestação, não há nada mais sensual do que uma manifestação quando somos novos. Manda-se à fava a timidez, dá-mos por nós a gritar e a rir, tocam-se mais perto os corpos, todos os gestos parecem consentidos, nenhum fica mal. Roçam-se roupas na confusão, a tua mão tocou na minha, foi de prepósito, foi sem querer, que interessa isso, estamos próximos.
Claro que és tu quem tem razão, que isto que gritamos agora faz mais sentido do que naquela outra vez, em que acompanhei uma rapariga a uma manifestação só para estar perto dela, sentir-lhe o cheiro, pode ser que, pode ser que, só quando lá cheguei percebi que se gritava pela Vida, qualquer coisa que não me lembro bem, Não ao Aborto, abaixo as clínicas de assassinos, só Deus nosso senhor põe e dispõem de nós. Deu resultado, sabes, dormi com essa rapariga, deu resultado insurgir-me contra esse crime, percebes, toquei-a ao de leve, de prepósito, sem querer, aquilo era uma confusão de gente e cheiros e gritos, dormi com ela, teria dito o que ela quisesse.
Mas claro que estava errado, desculpa lá contar te isto, é só para veres como sou sincero, claro que isto agora faz muito mais sentido, Sim à Interrupção Voluntária, claro que as mulheres não podem ser obrigadas a situações desumanas, a recorrerem à clandestinidade, quando há uma coisa tão simples em que muita gente por acaso nem pensa e que tu trazes tão clara pintada na barriga, com a letrinha redondinha de uma amiga, aqui mando eu, é o que tu trazes na barriga, aqui mando eu, no meu corpo.
Dormi contigo, claro, depois dessa manifestação que fazia, claro, muito mais sentido. E para mais apaixonei-me, se bem te records. Dormimos essa noite e muitas mais, fizemos férias juntos, fizemos planos, jantamos juntos, fomos ao cinema. Essas coisas que se fazem. Por isso não me entendas mal hoje, não se trata de uma manifestação, claro que a nossa é que fazia sentido e não a da outra beata. Se te falo disto hoje é porque no meio de tudo isto gostava que me emprestrasses a caneta para eu também pintar no meu corpo, não sei onde, não sei o quê, mas qualquer coisa que te fizesse lembrar que não engravidaste um dia por imaculada concepção que na tua barriga, que é tu, e isso não tem discussão começou a crescer um botãozinho que me parece que fui eu a pôr lá, não, claro que não, que o teu direito ao teu corpo, faz mais do que sentido, que não te sentes apta a procriar por agora que te sentes demasiado jovem, que te angustia a responsabilidade, que queres ter o direito de decidir sobre a tua vida e não ficar à mercê de acidentes, claro que sim, mas só te peço que repares que nem disseste nada antes de largares para Espanha, porque o corpo é teu, aqui mandas tu claro, mas repara que não sei o que escreva no meu corpo, mas algo me diz que tive alguma coisa ver com isso, quer me parecer que o que crescia de ti, dessa tua absoluta barriga sem discussão era também um pouco de mim, e não me entendas mal, o mais certo era eu entender tudo e concordar cm tudo, estar ao teu lado, pegar-te na mão, mas confesso-te aqui que saber que está feito e ja não há nada que eu possa dizer-me deixou assim um vaziozinho. Não tanto por essa coisa que ainda não era, mas por outra que vejo que também não é. Nós. A palavra que tinha escrito no coração também sem tu saberes.